Aqui é onde a terra se despe
e o tempo se deita..

(Mia Couto, A Varanda do Frangipani)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013


Não acho que fevereiro possa ser um bom mês, só não pode ser pior que dezembro, mas enfim, essa " tropicalidade " chega carregada de uma nostalgia invernal, e nessa noite de temperatura um pouco mais amena depois da chuva eis que encontro a melhor descrição de um sentimento de inverno que já li:

" No inverno a vida tornava-se atenta a si mesma, compreensiva e íntima. O cheiro se amansava, a lama apaziguava o campo. A voz durante horas silenciosas soava rouca e morna. O ar era úmido, as coisas do quarto isolavam-se através do frio e só a escuridão fundia os móveis. Lá fora a chuva caía sem força, sem cessar. O vidro descido da janela iluminava-se fracamente pela luz dormente do pátio. As gotas escorriam trêmulas, brilhantes, secretas, pela vidraça. Mas as folhas se desprendiam das árvores e arrastadas pelo vento nela batiam num rumor quase imperceptível. Gostaria de contar ou de ouvir uma longa história só de palavras, mas Daniel nesses tempos mantinha-se silencioso e difícil, quase inexistente no casarão. Ela ficava mais sozinha, olhando a chuva. Sentia-se interiormente arroxeada e fria, no seu corpo era lentamente asfixiado um passarinho. Mas isso era tanto viver que as horas decorriam felizes e distantes como se já estivessem marcadas pela saudade. De sua cama larga enxergava o teto perdido nas sombras, as paredes fundindo-se em penumbra. Só a janela brilhava quieta, só o ruído molhado incessante. No ar uma respiração contida pairava no escuro como o bater contínuo das asas duma borboleta. Voltava as costas para a janela, movia-se devagar no leito de casal da avó. O existir de borboleta continuava a ofegar com os olhos fixos nela. Um vento de gritos vinha do interior da mata como almas fugindo em desespero. Era uma mistura de vozes de coruja e das águas, do esfregar das folhas, dos últimos estalidos secos antes da umidade, tudo unido na mesma aguda fuga esgazeada, um vento de gritos atravessando o casarão como um sopro. Virgínia puxava a colcha quente e grossa com um pequeno cheiro de cinza. Debaixo dela seu corpo e o estreito espaço que seu corpo ocupava tornavam-se um túmulo familiar. Deixava então que o medo enfim escorresse, agora que estava abrigada. Procurava mesmo não adormecer para sentir tudo até tudo virar-se por si próprio e transformar-se em outra coisa que não o medo. Assim nada perdia do silêncio da noite de inverno. Os dias eram de uma tristeza perfeita que terminava por se ultrapassar e deslizar para uma quietude sem além. Os ramos vergavam nervosos ao vento, a água escorria rápida e brilhante pelas folhas, um impulso sem direção torturava as árvores e do rumor sem ritmo nascia como um grande vento fresco a esperança de amar e viver. "

Clarice Lispector em O lustre

( incrível como partes de  vidas podem caber em parágrafos únicos, estranha sensação de morar em algum livro antigo ).


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