Aqui é onde a terra se despe
e o tempo se deita..

(Mia Couto, A Varanda do Frangipani)

terça-feira, 17 de julho de 2012

A vista turva


Então a sombra o engoliu, ele não era mais ninguém, ainda com o mesmo verde assombroso nos olhos, mas sem habitar sua casca de pele por vezes rachada nas mãos, ou nos calcanhares. Era vazio de algo morno que fosse. Não existia, caminhava sem pegadas, sem um reflexo no espelho velho e marcado. Passava as manhãs de frio e garoa preparando os enxertos, era época da poda. Por entre seus pés imunes à geada passavam os gatos, ele nunca os via. Ele nunca me viu, nem sabe meu nome todo; nunca me chamou. Eu morri com ele antes de nascer. Nunca fomos, seremos só o que já passou, sempre no tempo de antes. Agora não mais. Ele sabe que não levarei flores, jamais trocarei a água dos vasos, vejo os gatos com frio. Algo em mim o lembra do que deve ser esquecido, nunca saberei. Nada de cerimoniais. Seja breve por favor. 

( não esqueça de colocar mais um cobertor. Os mortos sempre sentem mais frio do que os que vivem. )




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