Aqui é onde a terra se despe
e o tempo se deita..

(Mia Couto, A Varanda do Frangipani)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Heresia


O delicado cabelo quase totalmente branco estava preso em um coque, com grampos dourados, tinha perfume de flores com açúcar mascavo. Sobre o vestido floral uma manta branca de croche macio, uma meia de lã  e um sapato forrado bege.
Tricotava uma meia  colorida. Ao lado, mais no canto da sala, a pequena menina brincava com uma boneca de pano e prestava atenção nas mãos ageis da senhora na cadeira de balanço, havia uma sintonia entre elas, uma comunicação diferente, algo meio de olhar e um pouco até telepático. Em algum momento antes de escurecer a senhora chamou a menina: - senta aqui mais perto um pouquinho!; Sem responder nada, a menina aproximou-se e ficou agachada ao lado da cadeira, colocou os braços descansando no colo da senhora e a fitava com interesse que só as crianças conseguem manter. Com a voz mais doce possivel ela lhe falou: - Preciso que você preste muita atenção no que vou lhe dizer agora; precisamos combinar algumas coisas antes de eu partir. A menina apenas olhava, mas agora sua expressão mudara, estava levemente surpresa e peguntou: - Você vai viajar? Para onde?; - Então querida, é sobre isso que preciso lhe contar. - Vou para onde as pessoas que já viram muita coisa vão, preciso dormir um pouco, penso em ir morar em uma nuvem. - Vovó, fui que fiz algo errado? A senhora fica muito cansada de ter que cuidar de mim? - Não me doce anjo, claro que não. Eu apenas preciso ir porque é chegada minha hora. De maneira alguma quero que você fique triste. Quero que você apenas me prometa uma coisa muito importante. Promete? - Claro vovó, claro que prometo; pode me pedir qualquer coisa, vou fazer bem certinho e a senhora vai ter muito orgulho de mim. - Eu confio em você. Eu vou para um lugar bom e você vai ficar aqui, eu preciso saber que  ficara bem para isso preciso que  me faça uma promessa. - Sim faço vovó! -De lá da minha nuvem eu vou cuidar de você, e vou saber quando  precisa de mim se o seu sapato for vermelho, entende? - Acho que sim, acho que entendo. A senhora quer que eu lhe mande um sinal né? Sempre que estiver com medo eu uso o sapato vermelho? É isso? Dai eu sei que a senhora vai me ajudar. Certo vovó, isso é facil de fazer. Pode ficar tranquila. -Posso tbm lhe pedir um sinal vovó? - Claro que pode criança. - Vovó, lá da nuvem, a senhora ensina a chuva falar comigo?
Para essa ultima pergunta não houve uma resposta, apenas um longo abraço, o mais longo e emocionado de todos os abraços.
Alguns dias depois a terna senhora partiu, foi morar na sua nuvem e fez lá uma manta prateada. A menina comprou um delicado sapato vermelho e aprendeu a entender a chuva. Sempre pedia para sua mãe lhe contar sobre a sua avó na cadeira de balanço, aquela do cabelo perfumado; a mãe nunca soube responder. Talvez porque a senhora da cadeira de balanço tivesse partido para nuvem exatos 12 anos antes da pequena menina nascer...

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